Vol. 6 (2023): VI ENCONTRO ANUAL: ANAIS DA REDE DE PESQUISA EM GOVERNANÇA DA INTERNET
Descrição da edição
Os estudos de ciência e tecnologia têm apontado há um bom tempo para a necessidade de refletir sobre a agência que as plataformas digitais possuem nos processos de comunicação. Em 2012, baseada na teoria ator-rede, Fernanda Bruno pontuava que a ação é sempre uma atividade distribuída entre múltiplos agentes. Em suas palavras, “Quando agimos, devemos perguntar: quem mais age ao mesmo tempo que nós? Quantas entidades invocamos?…” (BRUNO, Fernanda. Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede, 2012, p. 196.) Naquele mesmo ano, Janet Abbate, conhecida historiadora da internet, sugeria o termo “agência híbrida” (ABBATE, Janet. L’histoire de l’Internet au prisme des STS, 2012) para chamar atenção ao mesmo fenômeno, onde há uma clara co-produção entre as tecnologias e as ações humanas, completamente imbricadas umas nas outras.
A impossibilidade de separar a ação humana mediada por plataformas digitais da construção dessas plataformas e do que elas permitem ou não fazer leva à inevitável conclusão teórica de que a responsabilidade por qualquer processo comunicativo deve ser distribuída entre os agentes humanos e também tecnológicos envolvidos na ação. Em outras palavras, se a intencionalidade humana é potencializada e levada a termo pelas plataformas, então a ação é conjunta e deve ser assim abordada e analisada.
Essa extrapolação teórica, porém, nunca reverberou nas políticas regulatórias das comunicações online. O medo do desincentivo ao desenvolvimento do mercado das plataformas digitais solidificou o entendimento, entre atores públicos e privados, de que as empresas mediadoras de conteúdo na rede são apenas conduítes para a circulação de informação, mas não são responsáveis pelo que circula por suas redes. Historicamente, para além da idealização de um ciberespaço independente de governos que se disseminava no início da internet, (BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace, 1996.) a tradição constitucional americana de proteção à liberdade de expressão também sustenta o desenvolvimento de legislações de não responsabilização das plataformas a partir da premissa de que o chamado “mercado de ideias,” (“marketplace of ideas”), uma construção teórica abstrata que supõe uma forma de auto-regulação positiva das ideias que circulam na esfera pública, é uma maneira efetiva de lidar com problemas de discurso, à semelhança da mão invisível do mercado liberal.
Para além do fenômeno da desinformação e seus conhecidos impactos nas conjunturas eleitorais (PRADO, Magaly. Fake News e Inteligência Artificial: o Poder dos Algoritmos na Guerra da Desinformação, 2022), as plataformas digitais têm exercido papel moderador constantemente nocivo em questões de gênero, raça, classe social, deficiência, etc. Nesse contexto, podemos citar a exclusão de posts do Instagram que celebram a comunidade LGBTQ+ (VARON, Joana. The Future Is TransFeminist: from imagination to action. Medium, 2020), o impedimento do uso de nome social nas redes sociais (LINGEL, Jessa. Digital Countercultures and the Struggle for Community, 2017), o racismo algorítmico expresso em aplicações que se estendem de buscadores como o Google a aplicações de reconhecimento facial (NOBLE, Safiya. Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism, 2018), a perpetuação do racismo de classe, a discriminação contra pessoas com deficiência imputadas em tecnologias e aplicações de inteligência artificial, etc (SHEW, Ashley. Ableism, Technoableism, and Future AI, 2020). A infraestrutura digital, que sustenta as redes sociais, também tem sido crescentemente questionada em vista de questões de meio ambiente e aquecimento global (HOGAN, M. “Environmental media” in the cloud: The making of critical data center art, 2023).
Claramente, a governança da internet, já comparada à “floresta tropical,” com seus inúmeros subsistemas e co-dependências, tende a priorizar visões sistêmicas, evitando soluções simplistas que venham a causar danos já previsíveis ao endereçar uma questão específica na “floresta,” sem olhar para o ecossistema em sua magnitude e complexidade (KLEINWÄCHTER, W., & ALMEIDA, V. A. The internet governance ecosystem and the rainforest, 2015). Diante desses desafios, lançamos as seguintes perguntas para inspirar o debate do VI Encontro da REDE (#REDE2023):
- Como os conhecimentos da governança da internet, que se estruturam a partir de uma abordagem ampla e estrutural, podem iluminar o debate de regulação da internet evitando que soluções imediatistas e focadas em problemas específicos se sobreponham?
- De que modo os desafios de regulação e desenvolvimento da internet e de tecnologias de inteligência artificial se articulam com questões de gênero, raça, etnia, classe social, deficiência, etc?
- Como temas de regulação da internet atravessam os desafios de soberania nacional e democracia que mediados por plataformas da internet global?
Tais indagações são provocações que podem inspirar os trabalhos submetidos dentro de suas respectivas temáticas e áreas de conhecimento, sejam estas de cunho teórico, técnico ou metodológico.